sábado, maio 02, 2009

processo deslocado e vão

Há dias uma espécie de angústia insiste em rondar a minha casa. Talvez ela já estivesse por perto, discreta, escondida nos meses que se passaram, nos anos que se passaram. É possível e até provável que sua presença já tenha sido notada antes. Uma, duas, quarenta e oito vezes. Apenas sombras, vultos na memória. Daqui de onde estou, se tento apelar para as lembranças ou observar o seu legado, parecem insignificantes. Certo é que agora ela se mostra despudorada. Abdica da sombra e se exibe vaidosa. Suponho que ela tenha se cansado de ser ignorada e finalmente percebeu que é preciso mais vigor para penetrar em paredes tão reforçadas, planejadas a partir de técnicas sofisticadas de engenharia, censura, arquitetura, psicanálise, medo, paralisia, candomblé e carnaval. Tudo isso, todo esse planejamento, feito por mim, com muito rigor e com a valorosa colaboração de alguns outros especialistas orgulhosos ou não dos seu respectivos cursos por correspondência. Todos nós, juntos, num esforço necessário de reforçar paredes, inventamos um projeto.
Hoje, seqüência lógica daqueles dias, meses, anos que se passaram, admito, ao ver as rachaduras, falhas no cálculo. E é exatamente atravessando, os poros, as fendas, as falhas, que a invasão acontece. Ela, aquela espécie de angústia, além de se instalar confortavelmente, toca castanholas no meu ouvido, canta desafinado, sapateia, tira a roupa num espetáculo dantesco, passeia sem constrangimentos por todos os cômodos. Tenho acompanhado sua estada, vigiado cada passo, cuidado para que ela não se sinta dona, contudo tenho sido um anfitrião razoavelmente cortês. Já que ela está aqui e ainda não decidiu quanto tempo permanecerá, venho tentando uma aproximação pacífica. Estou intrigado e quero respostas. Talvez, justamente ela, me ensine a reforçar as paredes ou me convença a derrubá-las. Sim, isso também é possível.
Ouvi histórias diversas a respeito desse tema, experiências interessantíssimas. Gente que não se preocupa com paredes. Moradores de casas tão amplas que seriam incapazes de notar a presença de qualquer das espécies. Mesmo as das mais audaciosas, que tocam castanholas, sapateiam e que usam sua escova de dente.
Relatos ocasionais dão conta de identificar outro tipo de gente. Aquele tipo que ao perceber a presença de alguma coisa semelhante a isso que tento descrever, não deixa que entre. Parede erguida. Posição de ataque. Observa a visitante inimiga, calcula a distância segura e num golpe, num único golpe, desintegra a estranha. Não se sabe de que matéria foram feitas essas casas, a espessura das paredes, qual o golpe desferido, muito menos a distância segura. Nenhuma garantia de que a espécie em questão estivesse preparada para o combate ou de que era de fato inimiga. Não lhe asseguro de que essa seja uma história verdadeira. Ninguém até hoje conseguiu me convencer. Não conheci nenhum representante dessa gente. Ninguém que tenha repetido o feito. Se é que foi feito.
Em compensação, as experiências interessantíssimas mais comuns, são as de uma gente que rejeita, briga, desfere muitos golpes, muitos mesmo, de yoga, de lícitos e de ilícitos, de lâmina e de asas, de verbo, muito verbo, de cooper, de circo, de mestre, e que mesmo assim, muitas vezes exaustos, recebem a visita e passam a ser reféns da tal.
Não quero cansar e sei que descansar é um risco.
Dentro daquela proposta de paz e de cortesia, alimento aquela coisa, a espécie de angustiazinha, com esses pensamentos que dão margem, com essas vontades/quereres que dão margem. Então insisto no fato de estar intrigado e querer respostas. Faço muitas perguntas, duvido das conclusões, permaneço circulando, rodando, voltando, ração e mais ração. Depois de farta, a coisinha espécie angustiante cochila.
Fantástica descoberta. A espécie que me visita e me invade cochila e me dá tempo para descobrir um novo golpe, para levantar ou derrubar algumas paredes. Cálculos, planos,projetos. Ela vai acordar, sapatear, gritar desafinado. Talvez mais frágil, ou antes o contrário. E quando isso acontecer, e eu não faço idéia de quando isso acontecerá, puxo ar e convido para tomar um café.
Mais uma vez, a quadragésima nona ao que parece, pacientemente se for possível, tentarei entendê-la.
Quem sabe um dia....

10 comentários:

Zingador disse...

"Processo deslocado e vão" pareço ter me perdido enquanto lia e me via em tal processo. Só que aqui as paredes se mexem como cortinas e ela, a maldita ou bendita a que você se refere, fica muda e parece ser cega, porque ela se bate o tempo todo nas cortinas, que são paredes.
Mas eu achei um jeito de não me preocupar com ela, lembro que de certo todos nós a temos, mas o importante é não se deixar ficar igual a ela, se batendo no meu caso, ou tocando castanholas e cantando desafinada como a sua.
Tinha um tempão que não vinha aqui e encontro esse lindo texto meu querido, lindo mesmo.

Abraço perfumado.

Bela disse...

Você bem sabe que te entendo tanto...

cynara ou cinara... disse...

É melhor pensar nos três porquinhos,que perdeu algumas casas até construir a que o lobo não conseguiu derrubar!!! Beijos,força e "FÉ na vida,FÉ no que virá"...( nada foi tirado de livro de auto-ajuda).Cinara

Neo disse...

Nem tão deslocado.. e nem tão vão.

Abraço


Neo

Manoela disse...

me encontrei!
saudade.

Larissa disse...

Eu adorei aqui! Vou voltar sempre.. E o jeito é mais uma vez, pela quadragésima nona ao que parece, pacientemente se for possível, tentar entendê-la. Haha

Beijo!

www.tiagolima.com disse...

que texto, fabão. prefiro o silencio. qualquer comentario posterior pode fuder tudo o que pensei depois da leitura.

Lisa Vietra disse...

Eu voltei aqui e li de novo. Voltarei outras vezes, eu sei. Essa é a grande e única questão da minha vida. Talvez no dia que eu desistir eu encontre...
Beijo!

Neto disse...

Ai amigo...
o quão eh desagradável essa visitante, de fato!! Mas não deixe ela mudar os móveis de sua casa de lugar não! o dono dessa porra eh vc!!bota ela pra correr...É o que tenho tentado fazer, por aqui tb...
Saudade enorme de ti!!
bjao!!

Adriana Bittencourt disse...

amigooo
q delicia de texto e de experiência....
entendimentos e escolhas....
muito bom ter vindo aqui hj.